Conversa à terça

A situação trágica grega é: o que deve ser será. Daqui o maravilhoso dos deuses, que fazem acontecer o que desejam; daqui, as normas mágicas, os tabus ou os destinos, que devem ser cumpridos; daqui, a catarse final, que é a aceitação do deve ser. (...)
O poético dos gregos é que esses destinos, tabus, normas, parecem arbitrários, inventados, mágicos. Talvez simbólicos.

Cesare Pavese in Ofício de Viver (trad. de Alfredo Amorim, entrada de 26 de Setembro de 1942)

bónus:

Estás só. Ter uma mulher que fala contigo não é nada. A única coisa que conta é o abraço dos corpos. Porquê, porque é que não o tens?
«Nunca o terás». Tudo se paga.

idem, entrada de 8 de Fevereiro de 1946

bomba de triliões

seiscentos mil milhões para aliviar os descendentes de rómulo e remo, quinhentos mil milhões para sacudir a pressão dos reinos de leão e, mais mil milhão menos mil milhão, outros tantos para outras tantas paragens todas elas com história, património e inclusivamente santos protectores. Ou seja, está descoberta a nova bomba que mata dividas soberanas sem estragar a pintura: o trilião. Basicamente, juntam-se vários milhares de milhões com outros milhares de milhões, põe-se no acelerador de biliões do fmi, dá-se ao pedal e no fim temos uns quantos triliões para bombear com aspersão opcional. No fundo a finança e a politica unidas saberão concluir aquilo que a física nuclear andou apenas com tímidas ameaças a tentar dar uns jeitinhos. Ora o novo triliãozão é uma espécie de partícula que resulta da fusão entre o trilião normal e o eurobond com rating acelerado, ou seja, pegamos em dois triliões ainda acabadinhos de sair do forno, polvilhamos com 100gr de eurobondes em pó e de seguida embrulhamos em obrigações do fed. Esperamos 2 a 3 minutos, perdão, séculos, e quando sentirmos o cheirinho a enxofre é sinal que o triliãozão está pronto a ser enviado para derreter a muralha da china que entretanto tinha sido revestida de azulejos viúva lamego com motivos alusivos à antiga nota de vinte paus.

Comam bolos

O lirismo é a única fórmula com provas dadas para tratar o tema das relações amorosas. Face a este êxito num ambiente tão hostil como o do amor julgo que é no mínimo um desperdício senão mesmo uma negligência grosseira não tentar explorar a fonte lírica para abordar seriamente a relação política, querendo eu dizer com isto a relação entre o soit disant cidadão e o seu governante, tenha este último saído de eleições, da tomada pela força, ou até mesmo caído do céu. O lirismo político que geralmente vem associado na linguagem corrente à ingenuidade, não deverá de nenhuma forma confundir-se com este conceito pois tal seria, tanto na sua natureza como no seu conteúdo, algo de bastante nefasto. O lirismo político, poderíamos enunciá-lo (e vou mesmo) da seguinte forma: o governante quer sempre do bom e do melhor para os seus governados e este últimos têm de fazer um esforço por compreender os primeiros no caso destes não compreenderem os segundos. Se a mensagem cristã manda dar a outra face, a mensagem lírica manda dar a outra nádega. Neste momento poder-se-ia pensar que estávamos perante uma teoria de pendor jocoso, mas desenganem-se, pois nem sempre onde está uma metáfora anatómica sub-lombar está uma brincadeira de mau gosto, e é precisamente o que se passa na teoria que arrolámos para este texto.

A relação política tem em comum com a relação amorosa o seu equívoco principal que é o mecanismo da incompreensão. Geralmente a relação amorosa só funciona quando uma das partes assume um qualquer tipo de submissão (que nalguns casos se pode chamar de inferioridade, noutros descriminação, noutros apenas come-e-cala-te-ismo), sendo que esta submissão assumirá contornos dos mais diversos, desde os mais simples como: pronto tu escolhes o que jantamos às terças, até aos mais sofisticados como: tudo menos gostares mais das minhas mamas do que dos meus sentimentos. Ou seja, o sucesso radica em compreender onde está a pedra angular do outro, saber qual é aquele pelinho que ao ser arrancado deixamos-lhe toda a careca à mostra. Na política trata-se do mesmo. O governante é um ser muito sensível, gosta de saber que é amado, gosta de saber que quando nos doem as articulações dos joelhos nós percebemos que é para o nosso bem e, regra geral, gosta de ser retribuído , gratificado, em resumo: compreendido. A relação política deve assim ser libertada, tal como a relação amorosa, de todos os empecilhos próprios das relações causais (ou ditas científicas), o que no fundo quer dizer que a exaltação do governante é um elemento essencial do seu sucesso e do sucesso da relação em geral. Por isso, devem ser urgentemente recuperados o encómio e o louvor como formas privilegiadas de relacionamento com o poder, abandonando o discurso irónico e até sarcástico, e muito menos o crítico, que no fundo só provocam inevitavelmente o progressivo afastamento entre governantes e governados, potenciando discórdia e, no limite, muita tristeza. Tudo o que fuja disto, já se sabe, dá no que dá.

A impertinente sedução

Esta é a história de como um lapso condicionou a vida dum rapaz que até tinha algumas possibilidades de vingar na vida, designadamente na vida que interessa em momentos de dívidas soberanas, que é a vida amorosa, considerando que a moral é de um campeonato diferente e não está sob a ameaça dos mercados. Soeiro Vicente era bancário e ganhava a vida ajudando o seu patrão - mesmo que anónimo - a sacar comissões de descoberto a comerciantes dum centro comercial. Fruto dessa ignominiosa actividade foi criando uma rede de contactos que o levou sem especiais percalços a travar conhecimento dalguma forma intima com Sónia Luz, competente vendedora duma loja de relógios, moça com boa apresentação e que nem abusava do doping cosmético, se bem que não conseguia fugir da alavanca do salto alto, uma verdadeira vertigem para quem tem de sobreviver abaixo duma certa métrica. Um bancário discreto e uma vendedora de relógios parecia garantir um equilíbrio de forças com boas hipóteses de sucesso quer emocional quer até nas outras amanuências adjacentes à paixão. No entanto, Soeiro achava-se pouco atraente e, mesmo que não enciumasse em excesso , não poucas vezes fechava a agência pensando autobotonicamente em que pulso estaria nesse momento a sua Soniazinha a segurar, tentando impingir um par de cronómetros que, já se sabe , são tão falsos como o amor e os pêssegos que largam caroço. Geralmente dois suspiros e um alivio no elástico das cuecas e a ansiedade passava. Mas certo e não previsível dia, a sua irmã Lurdes deu conta da insegurança de seu irmão e foi peremptória como são quase sempre as irmãs nestes temas: tens de aplicar a sedução, mano. Infelizmente tal conselho foi-lhe dado no rescaldo duma intromissão periscópica em certos e determinados canais do seu interior gástrico e, inevitavelmente, pelas leis reveladas ao universo por um moço vienense de maus fígados, Soeiro interpretou que tinha de aplicar uma sedação em Lurdes para a libertar dessas putativas tentações com os pulsos dos clientes, e um dia, ao fim da tarde, aviou-lhe um spray pelo bucho. Sonia relaxou, inebriou, toldou-se-lhe a luz e ficou-lhe nos braços. Foi nesta altura que Soeiro pegou na gramática e com espanto reparou que se um verbo avançava para seduzida o outro se afastava para sedada. Agora, nada a fazer, ajeitar as almofadinhas, e esperar pelo despertar de Sónia: viria à superfície como uma sereia agradecida pelos feitiços do seu morfeu, ou como uma bulldozer pronta a dizer, prepara-te, meu cabrão, que aqui vou eu. No fundo o dilema de todos os homens que mesmo sem se enganarem nas terapias ficam com uma mulher nos braços. Soeiro, bancário de comissões a descoberto, afinal fora esperto, teve-a na mão, nem que fosse à base duma lapsada sedação, mas passou o resto da tarde nas compras, a aliviar da pulsão que levou nas trombas.

Citizen Claim

Afastadas as ilusões libertárias, conservadoras, estruturalistas, liberais, deterministas ou psicadélicas, (sendo que a ordem exposta é arbitrária) ou melhor ainda , sabendo como se sabe hoje que: seja: a) a sociedade como um todo; b) a sociedade como uma soma de partes; c) a sociedade como algo que nem sequer exista fora da letra impressa; d) o individuo como uma peça num puzzle; e) o individuo como uma peça numa engrenagem; f) o individuo como um ser independente e livre; g) o individuo como algo que nem sequer existe; h)  o individuo como uma marioneta sob o comando de mãos visíveis ou invisíveis - os modelos explicativos estão mais ou menos honrosamente esgotados, em qualquer destas hipóteses apenas nos resta uma solução que eu chamaria de 'misticismo acrobático'.  Ora esta corrente de pensamento (começou mesmo agorinha a correr) diz-nos essencialmente que é da junção entre a vontade do conhecido com a vontade do desconhecido que se organiza o mundo. Sendo que estas duas vontades se encontram muitas vezes em partes esconsas ou mal empoleiradas e muitas vezes mesmo em partes incertas, radica no coração do homem a alephização da coisa. Como já será de fácil previsão, o nosso coraçãozito, dada a sua natureza esponjosa, parece relativamente apto ao estica-para-ali-estica-para-lá e assim com alguma acrobacia acaba por chegar e encaixar-se em qualquer lado. Conclusão, pois todas as iniciativas humanas e dignas como esta exigem conclusões: temos de reclamar a Deus nosso senhor não só o clássico e canónico corações ao alto, mas igualmente o corações em baixo, apelando a um ajuste da nossa condição mais adequado ao desvanecer das características nobres para as quais o ser humano parecia estar talhado, desde o tempo dos primeiros mártires, pescadores de homens e inclusive decoradores de catacumbas. Assim, conseguiríamos produzir modelos de explicação do mundo mais consentâneos com o nosso aparelho digestivo e menos inspirados no nosso aparelho respiratório.

verso à terça

Força o inimigo, que é a tua estrutura, a descobrir-se. Se não pudeste entortar o teu destino, terás sido apenas um apartamento alugado.

Henri Michaux, in Poteaux d'angle (trad. de Júlio Henriques, para 'O Retiro pelo Risco')

hernianópolis


abre a boca,
respira fundo,
engole agora,
isto não é o fim do mundo
com calma,
pense só em respirar,
concentrado,
assim não vai dar,
faço imensas destas,
assim não,
se quiser segure-lhe na mão,
faça-lhe uma festa,
[segure-me antes na testa]
concentre-se na respiração,
assim não,
vá,
pode babar,
agora vou para outra zona,
não há azar
está tudo a correr bem,
não pense em nada,
[ai minha mãe]
é só uma impressãozinha,
nem doi
[rima com mariano rajoy]
não tarda acaba,
vou tirar um bocadinho,
deixe sair a baba,
à vontade,
assim não,
[deus, pátria, família, esófago]
respirar fundo,
vá,             
tão fundo não,
concentrado,
relaxado,
[decide-te cabrão]
é só mais um jeitinho,
só mais uma voltinha
[está ali, está ali]
não engole,
não engole,
agora não engole,
sim,
concentrado a respirar,
[a enfermeira não é assim tão má]
vai acabar,
já está.

res gate

Res, rei, é assim que se apresenta, em declinação sintética:  a coisa - na língua morta mais viva do universo. Apesar de hoje a coisa já estar extrema - e justamente, diga-se - valorizada, e a história mostrar-nos que tudo pode acontecer, inclusivamente coisas que nunca aconteceram, ou outras que nem podiam ter acontecido, não é excessivo lembrar que a coisa pode estar presa por fios, ou seja, pode estar para haver barraca na, e com a, coisa. A coisa, a nossa coeva res, presta-se a isso, evidentemente, põe-se a jeito, não sei se me estão a perceber, dá o flanco, a res desde que é coisa nunca soube ser discreta, e agora é isto: a res pode ser apanhada nas malhas da coisa; a res fez a cama em que se irá deitar. O nosso maior dilema será como lidar com o escândalo que vai estalar nesta res feita coisa. Olhar para ele como aquela coisa dos novos bárbaros, equipará-la antes a uma segunda vinda coisificada do Cristo, pensar nas pragas do egipto, pensar se virá dos herdeiros da grande marcha, ou dos herdeiros de bismarck, enfim há muitas formas de abordar, causalidar, prever ou simular o escândalo que pode despontar na res, tanto mais que «tranquilo é o fundo do mar que trago dentro de mim; quem adivinharia que oculta monstros divertidos?» como diria aquele outro maluco alemão dos bigodes farfalhudos. Uma coisa parece certa, a coisa não se mostrou digna da res e agora se alguém com lábia e jeito der com a língua nos dentes ao Altíssimo - que pode perfeitamente ainda estar anestesiado com aquela outra famosa coisa da liberdade como condição -  haverá bronca pela certa e um ou outro anjo vai ter de pôr as asinhas de molho à conta da escandaleira que rebentará cá no res do chão. Há até quem diga que a coisa está preta, e ainda a podem levar daqui para fora; para branquear.

made in woven #13

Inesperadamente aquele tecido com acabamentos tão intensos, tão profundos, com tratamentos dos mais sofisticados e persistentes, um dia, depois de passar por uma simples limpeza a seco, acordara cru, como um pano cru. Todas as cores o deixaram, todas as protecções, todos os efeitos especiais, tudo aquilo que o tinha feito um tecido cobiçado pelos mais afamados costureiros e pelas mais glamorosas modelos. Perdera o toque, o brilho, a subtileza, a queda suave, o passear ondulante, e era agora um pano liso, baço, teso, seco, empapelado. Nunca mais tocaria naquelas peles sedosas, nunca mais lhe passariam pelos poros os odores dos perfumes, nunca mais roçaria num corpo ardente de desejo. Tudo se fora naquela lavagem traiçoeira. Nas nódoas estava afinal o seu poder. Mesmo tendo sido fugaz a sua presença junto à vida do corpo que amava, agora estava preso na pureza estúpida do pano cru, virado para si próprio, em dobras e vincos feitos no rigor duma geometria de conveniência, feita moeda de compensação.

made in woven #12

Um porquê pode fazer uma dúvida, dois porquês podem fazer uma incredulidade, três porquês podem fazer uma indignação, quatro porquês podem fazer uma incompreensão, cinco porquês podem fazer um desespero, seis porquês podem fazer uma desistência, mas a partir do sétimo porquê revela-se aquela repetição que já só é própria do amor resistente.

made in woven #11

Os punhos e os colarinhos gastos são os principais sinais de envelhecimento das camisas. Muitas vezes podem ser substituídos e põem-nas como novas, aptas para novas etapas de vaidade e serviço. No caso do coração do homem o que se desgasta primeiro são as ilusões de correspondência, e depois são as frustrações de compreensão, no entanto, ambas as zonas são demasiado escorregadias para receber pano novo.

made in woven #10

O cerzir dos mercados: os violentos ataques à zona eurogena só podem ser combatidos com robustas fazendas púbicas.

made in woven #9

Há duas soluções para uma malha solta: ou nó ou nada.

made in woven #8

Compreender o esgaçado é meio caminho para condescender com o roto e três quartos do caminho para andar de mão dada com o nu.

made in woven #7

Quando foi alfaiate e se especializou em casacas de virar, o seu maior problema eram os bolsos: tinham de ser grandes em qualquer dos lados.

made in woven #6

Há duas hipóteses para quem se sente feito num trapo: ou torce e entrelaça com outro trapo podendo chegar a fazer de tapete, ou esfarrapa-se, mascara-se de fibra, e sonha em vir a encher almofadas. Se Jesus fosse filho de tecelão teria antes sentenciado: Panniculus eris et in panniculus reverteris.

made in woven #5

Toda a bainha pode ser folga, mas nem toda a folga pode ser bainha.

made in woven #4

Existem dois tipos de gajos chatos: os 'ferros de engomar' , que passam por cima dos outros como quem pensa que os estão a alisar, e os 'etiquetadores' , que estão sempre a indicar aos outros a que temperatura é que podem encolher.

made in woven #3

Era o seu último dia no tear. Destinara o derradeiro padrão já uns anos antes, e fora guardando os fios coloridos dos restos das colecções, alguns já bem esbatidos pela curtição do tempo; mas fizera-o com pouca convicção, mesmo que sem medo das nostalgias a vir, e apenas sabendo que um dia os usaria para tentar enganar o desespero com uma falsa bomba de saudade, e com uma mais falsa ainda bainha de compreensão. Quem depois de mim urdir, bom urdidor de mim fará, consolou-se sem razão de consolo.

made in woven #2

Primeiro fia-se depois trama-se.

made in woven #1


O hábito desfaz o monge.

o berçoulos da civilizanikas

evangelos venizelos não foi escolhido e lucas papademos colocou condições, vai daí karoulos papoulias também disse que não estava para aí virado, e muito menos samaras, pelo que se aguarda por filippos petsalnikos para suceder a papandreos; penélope mantém-se fiel a ulisses mas aquiles promete mundos e fundos com um calcanhar novo.

verso à terça (*)

No fundo da minh'alma há um terno segredo,
solitário, perdido e que jaz repousado;
mas às vezes meu peito ao teu vai respondendo,
todo a tremer de amor, vibrando desesp'rado

G. G. Byron , The Corsair (tradução de David Mourão-Ferreira)

(*) mas já quarta a fundo

gêum

Finalmente estou só. A grande questão para quem está só é descobrir se abandonou ou foi abandonado. Não há tema mais rico para uma consciência do que este de elaborar e fabular sobre a sua solidão. Melhor que a culpa, melhor que o arrependimento, melhor que o remorso, melhor que a inveja ou a vaidade, o abandono é o príncipe de todos os conscienciosos. Nada alimenta de forma tão proteica uma solidão do que deambular sobre o caminho que nos levou a ela, balancear entre vitima e carrasco, sorver em simultâneo das benesses que nos permite o determinismo e das virtudes do voluntarismo. O nosso destino e o nosso livre arbítrio juntam-se harmoniosamente na alma de quem está só. Hoje distraio-me assistindo ao grande espectáculo da minha consciência, deixando-me encadear por aquele foco milagroso que mostra o bem a vencer o mal nem que seja à tangente.

gêdéz

[Até] Deus precisou de nos apresentar os seus mandamentos. Está na nossa natureza pôr o amor acima de todos os outros sentimentos mas depois não sabemos nem como nem com quem, ou quem sabe como, não sabe com quem, e quem sabe com quem, não sabe como. É esta a visão literática da coisa, a visão prática diz-nos que tudo é possível até porque na prática podemos dizer que o amor não existe. A necessidade de nos aliarmos, essa sim, convive com a necessidade de nos isolarmos, sendo que cada uma tem o seu preço, praticamente desconhecido até ao momento em que chega a factura. Salve-se quem quiser é - uma parte da - mensagem decalógica, salve-se quem puder é a mensagem segura da sociedade das nações. Para esta procuram-se há séculos e séculos mandamentos que forneçam também uma serventia decente. Até agora parece não haver tábuas que cheguem. Deus disse para amarmos o próximo sem que isso implicasse aliarmo-nos com ele. No mundo a moral está toda por fazer.

gêssinco

Quando me voltares a amar fá-lo com mais jeitinho. Sei que não foi por mal mas da última vez deste-me demasiado crédito, eu abusei, depois perdemos o controlo à situação e agora tenho de ser resgatado por paixonetas de compromisso junto dos corações emergentes. Sabes que o coração dum homem pode ser um poço sem fundo, está destinado a desperdiçar recursos e a agarrar-se à primeira hormona que lhe cheire a especiaria, arrastando-se em cabos das tormentas como caravelas sem norte. Ama-me mas põe-me condições, faz-me uma grelha, define-me um padrão, diz-me até onde posso ir, que riscos posso pisar, em que buracos me posso enfiar. Até que letra podem ir os nomes das minhas amantes. Quando te perder outra vez quero ter a certeza que a culpa foi toda minha.

gêdois

Amo-te Dilma. Aqueles tempos com a Ângela foram um engano. Estou aqui, vês, voltei para ti. Prefiro de longe uma tropicobunda amazónica a uma eurobonda do reno. Fui atrás duma quimera empapelada e esqueci o oiro que tu já me tinhas peneirado. O trópico não faz exigências, nem põe austeridades na conta-corrente, não trocarei jamais uma boa inflação por qualquer promessa de eficiência. Estou reconvertido ao ónibus, reneguei o bus, podes vir confirmar, e ficamos só nós dois, tu e eu, no banco de trás, dizendo mal das traseiras duras dos volkswagens. Tu sabes o quanto eu sempre te achei charmosa, com ela foi apenas uma ilusão de óptica, dioptrifiquei num momento de fraqueza. Não lhes emprestes a eles, não, guarda-o todo só para mim, não te arrependerás se deixares que eu afague os teus reais, vais ver, e ela acabará por sucumbir de ciúmes quando nos vir juntos e a elogiar os teus dentinhos sexy com que um dia trincarás toda a bordinha da velha e gasta europa. Amo-te Dilma, e hoje eu sei que nunca deixei de te amar.

gêsséte

Quando o nosso amor era poderoso não precisávamos de alianças. Autosuficientes: Irreferendáveis, irrestruturáveis, irresgatáveis. Irra, éramos tudo. Criámos um nós à imagem e semelhança dos deuses. Mas vivíamos o desconforto da esmola grande. Quando a patine estalou no andor olhámos para a reserva de óleo de cedro mas ninguém quis pegar no pano. Deixa riscar. Hoje temos a clássica coisa em forma de assim, um assim à la carte, nalguns dias cozido, noutros assado, completamente à prova de emoções fortes, condimentado apenas com palavras de ocasião, mas verdadeiras alíneas de tratado; hoje amamos ao ritmo das cláusulas da conveniência, confirmando a tese de que afinal o amor é o sentimento que melhor serve todos os interesses.

gêtrês

Metralha e dor, foi o saldo. Tudo espalhado pelo chão. Agora ninguém quer limpar. Passeamos em slalom por entre os destroços. Olhamos de relance de quando em vez, mas sem lhes tocar. Brincamos ao jogo do querer e do poder. Perde sempre o poder. No homem a vontade é sempre mais forte, tão forte que muitas vezes se disfarça de possibilidade. Só tínhamos um cartucho para queimar e andámos a queimá-lo aos poucos, mas pondo um bocadinho de pólvora de lado não se fosse dar o caso de ainda termos de sacar de uma explosão. Ainda sobejou um bocadinho desta reserva. Cheiramo-la agora como que se fosse uma recordação. Pólvora seca. A nossa recordação é uma mão cheia de pólvora isenta de humidade, guardando a explosão reprimida como quem guarda um quisto de estimação.

gêvintium

Fechei bem os olhos para te ver. Tornei-me incógnito e entrei no teu sonho. Fingiste confundir-me com uma paixão de juventude. Hesitei em entrar no jogo, hesitar sempre foi o meu forte, sou o grande hesitador, faço da hesitação uma arte. O teu sorriso funciona como prova, o desenho dos teus lábios como demonstração e o teu andar faz de confirmação, afastando os contraditórios duma cabeça cheia deles. Desafino. Faço parte daquela minoria de desafinados que deixou o coração no intervalo das cordas atrapalhando-lhes a vibração. Quando me largaste para o teu amor de sempre já nem tinha força para morder os lábios; os meus. Saí do sonho de mãos a abanar. Com tudo a abanar.

gêvinte

Subiste pela minha alma adentro e puseste um ponto final no princípio das minhas frases; centraste-me a periferia; depois cansaste-me a fadiga, aceleraste-me a travagem e sussurraste-me aos berros: quem não estiver farto de si próprio levante a perna e dê uma braçada em frente. Foi então que gaguejei um assobio e assoei duas lágrimas. Palavra de mentiroso que estou desejoso de te ver pelas fuças, abraçar-te os joelhos e ajoelhar-te os ombros. Quero agradecer-te por tudo o que não me fizeste, desculpar-te todas as inocências. Não guardei nenhum dos teus segredos, não confiei em nenhuma das tuas inconfidências. Dir-te-ei sempre a verdade principalmente quando não me for possível.

verso à terça

Oh, bem-aventurados fingimentos,
Que nesta ausência tão doces enganos
Sabeis fazer aos tristes pensamentos!

Camões, Luisvazde