Revolução CUECA (IV)

 

O tempo da supremacia (palavra entretanto proibida) dos Fleumáticos chegou ao fim e os Histéricos tiveram a sua oportunidade de voltar ao poder. A Lei da Hipocrisia agora servia-lhes como uma luva e com a virada de casaca de Bela Calhau tudo confluía para um domínio sem precedentes. O pronto-a-vestir nunca teve tanto negócio com o rasgar de vestes constante nem o nome de Deus foi tão invocado em vão. 

Os Cínicos pela primeira vez sentiam-se encurralados e tentaram a aliança clássica de sobrevivência com os Quessefodistas, para quem, no fundo, estava sempre tudo bem desde que nada se resolvesse definitivamente.

Bela Calhau sentia-se como peixe na água junto dos Histéricos. Em pequena sonhara mesmo ser sirene dos bombeiros e agora tinha o poder de alarmar uma nação inteira em letra de lei.  

Uma das medidas mais icónicas deste período foram os ‘vouchers do cagaço’. À conta desta lei cada cidadão que provasse ter provocado nas redes sociais uma trend de alarme e consternação teria direito à devolução do iva das manicures. Após uma inaudita manifestação das pedicures promovida pelos fleumáticos a medida foi alargada a pés e mãos. Os cínicos chegaram a apelar à sublevação dos manetas mas já tinha esgotado a quota prevista na Lei da Hipocrisia. 

O sistema aproximava-se assim da perfeição. Era a Revolução Com Urbanidade Evoluindo Calmamente para A.

Bela Calhau (III)

 

Mesmo depois do ambiente criado pela revolução CUECA as coligações seriam inevitáveis. Como dizia o citado do costume, a única coisa pior que ter aliados é não ter aliados. Daí que Berta Calhau quando foi líder dos Fleumáticos tenha escolhido como lema do seu mandato o ‘Quessefoda-com-fleuma’. A primeira lei que esta coligação informal conseguiu fazer aprovar na Comissão DONRA foi a ‘Lei da Hipocrisia’. Era condição essencial para a paz social que a hipocrisia fosse protegida e mesmo promovida. 

Para muitos críticos, principalmente os Cínicos, tratava-se apenas de normalizar aquilo que já era comportamento corrente mas para Berta Calhau isso também era importante: uma lei que não servisse para mudar nada era precisamente o cunho que a hipocrisia precisava de deixar. A sua má fama devia-se ao domínio que os histéricos tinham assumido nos últimos anos. Sempre na boca destes servia de arma de arremesso e nunca cumpriu a função para a qual foi criada: a hipocrisia é grande defesa para a sanidade de qualquer político. 

Bela Calhau sabia que a sinceridade combinada com a convicção era mortal para qualquer cidadão saudável e devidamente preconceituoso. Assim, nesta lei, estava bem estabelecida a quota anual de ‘dissonâncias cognitivas’, ‘enviesamentos’, ‘duplos-padrão’ que cada deputado da comissão DONRA tinha direito durante uma legislatura. O que esta lei da hipocrisia deixava assim bem claro era que o mais importante é o nome que se dão às coisas e não tanto o que significam. 

Bem dizia Berta Calhau no preambulo da lei: ‘dado que a mentira é fácil de definir e a verdade é indefinível apenas nos resta a hipocrisia para salvar a honra da CUECA’. Há muito tempo que não se assistia a tal unanimidade no espectro das poses do regime. Rumo a.

Bela Calhau (II)

 

O que seria dos histéricos se não existisse o apocalipse. O que seria dos fleumáticos se não fosse o ridículo. O que seria dos cínicos se não fossemos mortais. O que seria dos quessefodistas se tivéssemos mesmo memória.

A decisão do poder ser repartido por grupos de pose e não por grupos de ideologias tem-se mostrado bastante equilibrada. E acrescentada a possibilidade de termos forçosamente de mudar de pose em cada dois anos ficamos próximos de atingir a perfeição possível.

Bela Calhau tinha sido uma óptima fleumática. A fleuma tinha-a encontrado no arranque da maturidade, naquela fase em que se costuma dizer que as mulheres estão resolvidas (os homens nunca se resolvem), nada têm a provar nem à sua vagina nem à sua mãe. É uma balela, sabe-se, mas este regime das poses permite viver com balelas sem estas nos prejudicarem. Tudo são fases, não se comprometem éticas nem morais, e substitui-se a malograda convicção pelo sentirmos-bem-na-nossa-pele.

Na sua liderança dos fleumáticos Bela Calhau tinha contado com o apoio inicial de Jaime Carapau que estava prestes a passar-se para os cínicos. Nos primeiros tempos em conjunto chegou a pintar um clima mas Bela achava que a fleuma não combinava bem com a paixão. Com Bela Calhau os fleumáticos passaram um período arrasador. Os cínicos pareciam meros brincalhões, os quessefodistas foram desclassificados porque estavam a assumir uma ideologia anarquista e os histriónicos pura e simplesmente resumiram-se a um bando de malucos.

Quando Jaime Carapau se passou para os cínicos e ainda não tinha conseguido aí grande protagonismo, Bela Calhau aproveitou e fez passar a lei da fleuma. A fleuma estava em alta e a lei estipulava: quem se indignasse teria de confinar. A realidade tinha de ser consumida sem convulsões. Pareceu ser uma clara concessão aos quessefodistas apesar de sempre negada por estes. Porteiras, taxistas e twittolas começaram a ter vida difícil e os histéricos viram aí uma crescente base de apoio.

Apesar desta dinâmica, na Comissão DONRA tudo se passava com dignidade. Uma pose combinada e espectável era claramente mais saudável do que uma convicção à solta e muito mais digna do que uma ideologia em roda livre.